Será esta uma das causas do limbo jurídico trabalhista-previdenciário?

Esta é uma questão muito discutida e que me intriga de sobremaneira.

Será que tecnicamente o apto do médico do trabalho é diferente da capacidade para o trabalho afirmada pelo perito do INSS?

Legalmente, não há dúvidas, existe diferença entre o médico do trabalho dar apto e o perito do INSS considerar o indivíduo capaz para o trabalho.

Essa diferença reside nos efeitos jurídicos de cada ato, pois o ato administrativo do INSS goza de presunção de legalidade e legitimidade.

Em nosso ordenamento jurídico, inclusive, existe lei que estabelece hierarquia entre atestados médicos (Lei 605/1949 estabelece em seu artigo 6 parágrafo segundo), onde a decisão do perito médico do INSS é hierarquicamente superior àquela do médico do trabalho.

Tal dispositivo foi recepcionado pela Constituição Federal de 1988, inclusive com Súmula do TST sobre sua validade (Súmula 15 do TST).

Este também tem sido o entendimento dos tribunais trabalhistas ao analisar casos de limbo jurídico trabalhista-previdenciário.

Mas tecnicamente, existe diferença entre avaliar apto e capaz para o trabalho?

Só o médico do trabalho deve considerar os riscos ocupacionais e informações sobre o meio ambiente de trabalho?

A meu ver, não!

Explico.

Por uma análise teleológica, tanto o perito do INSS quanto o médico do trabalho avaliam a mesma coisa: a possibilidade ou não de um trabalhador retornar ao exercício de sua função na empresa em que trabalha/trabalhava.

E para que está possibilidade seja analisada de forma adequada, não podemos ignorar o meio ambiente de trabalho em que este trabalhador está inserido e retornará.

Ou seja, o conhecimento sobre riscos ocupacionais e o meio ambiente de trabalho são fundamentais!

Claro que existe diferença entre a consulta médica realizada pelo médico do trabalho e a perícia realizada pelo perito do INSS, diferenças que não podem ser ignoradas, mas não são o objeto de minha análise.

O que chamo a atenção é: será que ao avaliar a capacidade laborativa, as informações necessárias não são as mesmas daquelas para considerar um trabalhador apto ao trabalho?

Entendo que sim!

Dentre estas informações, os riscos ocupacionais, ou seja, informações sobre o meio ambiente de trabalho são fundamentais.

Não podemos reduzir a análise de capacidade laborativa apenas a avaliação da doença, mas sim ao binômio doença e meio ambiente de trabalho.

Aqui não defendo, por questões práticas, que o perito do INSS deva realizar vistoria no local de trabalho de forma rotineira, mas sim que tenha informações mínimas necessárias que auxiliem na sua avaliação.

É notório que uma mesma doença pode incapacitar para um tipo de trabalho e não incapacitar para outro.

A função específica exercida pelo segurado deve ser considerada na avaliação da capacidade laborativa, incluindo aí os riscos ocupacionais.

Ou admitiremos que o fato do segurado exercer atividade em altura, operar uma máquina com risco de acidente grave ou ainda trabalhar armado não deve ser considerado na avaliação da capacidade laborativa pelo INSS?

Isto inclusive consta no Manual de Pericias do próprio INSS:

“Incapacidade laborativa é a impossibilidade de desempenho das funções específicas [grifo nosso] de uma atividade, função ou ocupação habitualmente exercida pelo segurado, em consequência de alterações morfopsicofisiológicas provocadas por doença ou acidente.”

Deverá estar implicitamente incluído no conceito de incapacidade, desde que palpável e indiscutível no caso concreto, o risco para si ou para terceiros, ou o agravamento da patologia sob análise, que a permanência em atividade possa acarretar.

Como pode ser observado, avalia-se a possibilidade de desempenho das funções específicas de uma atividade para afirmar ou não por capacidade laborativa, o que só é possível com conhecimento sobre o meio ambiente de trabalho, assim como a NR-07 exige do médico do trabalho:

“7.3.2. Compete ao médico coordenador:

a) realizar os exames médicos previstos no item 7.4.1 ou encarregar os mesmos a profissional médico familiarizado com os princípios da patologia ocupacional e suas causas,bem como com o ambiente, as condições de trabalho e os riscos a que está ou será exposto cada trabalhador da empresa a ser examinado.” [grifo nosso]

Neste sentido, o perito do INSS e o Médico do Trabalho consignam a mesma coisa ao dizer capaz para o trabalho e apto ao trabalho, apenas com efeitos jurídicos diferentes:

“Trabalhador, retorne ao exercício de suas funções!”

A diferença entre os termos, apto e capaz, só se justifica em razão de seus efeitos jurídicos.

O distanciamento da avaliação do apto e do capaz para o trabalho, sendo que muitos defendes que o ultimo não deve considerar os riscos ocupacionais, certamente é uma das causas do limbo jurídico trabalhista-previdenciário.

E vamos a um exemplo prático.

Indivíduo com diagnóstico de esquizofrenia é incapaz para o trabalho?

Depende!

E depende do que? Dos riscos ocupacionais e do meio ambiente de trabalho!

Este indivíduo pode trabalhar em atividade administrativa, com sua doença controlada, mas não pode trabalhar armado, mesmo com a doença controlada.

O que diferencia uma atividade e outra?

O meio ambiente de trabalho e os riscos ocupacionais a ela inerentes!

Quando não se tem a ciência de que o trabalhador exerce atividade armado, poderá se conceder a alta previdenciária sem nem mesmo realizar qualquer tipo de reabilitação. Este é o ponto!

O INSS tem condições de conseguir informações sobre o meio ambiente de trabalho, seja através de documentos e demonstrativos ambientais das empresas (LTCAT, PPRA, etc.) , seja através do SIMA, que pode ser direcionado ao médico do trabalho.

Ainda temos o E-Social, que trará diversas informações sobre o meio ambiente de trabalho e poderá, certamente, ajudar nesta avaliação.

E caso necessário, pode ainda, em última circunstância, diligenciar no local de trabalho.

Fato é que diante da existência de uma doença ou sequela, não é possível avaliar capacidade laborativa sem saber o que este trabalhador faz e quais os riscos ocupacionais e exigências de seu exercício laboral.

A definição da aptidão ou capacidade laborativa sem informações e conhecimento do meio ambiente de trabalho está incompleta e propensa a equívocos, sendo grande a possibilidade de se acarretar no referido limbo jurídico.

“Ah, mas o conceito de incapacidade e inapto são diferentes. Sempre foi assim.”

Bom, neste caso, acho que está na hora de rever estes conceitos.

A sociedade só evolui com o debate de ideias, jamais com comodismo ou a imposição de um pensamento hegemônico.

Trata-se de uma discussão essencial, uma vez que os envolvidos, empresas e trabalhadores, claramente não estão contentes com a realidade atual.

O limbo jurídico trabalhista-previdenciário é uma realidade na qual o ônus recai num primeiro momento sobre o trabalhador e depois sobre a empresa.

Ignorar esta situação real e diária é fechar os olhos para os fatos.

“Mesmo quando todos os especialistas estão de acordo podem muito bem estar enganados.” (Bertrand Russell)

Autor: Dr. João Baptista Opitz Neto – Médico do Trabalho, Mestre em Bioética e Biodireito pela UMSA/AR; Especialista em Medicina Legal e Perícias Médicas; Especialista em Ergonomia; Perito Judicial / Assistente Técnico nas áreas trabalhista, cível e previdenciária. Autor do livro “Perícia Médica no Direito” (Editora Rideel); Colunista do portal SaudeOcupacional.org; Professor e Palestrante nas área de Pericia Médica, Medicina do Trabalho e Meio Ambiente do Trabalho; Diretor do Instituto Paulista de Higiene, Medicina Forense e do Trabalho.

O Dr. João Baptista Opitz Neto escreve periodicamente para o SaudeOcupacional.org, na “Coluna do Opitz”.

Fonte: saudeocupacional.org